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Arte desconfortável: corpo, feminismo e violência

Updated: Mar 13, 2022

por Christina Elias

Yoshiko Shimada, look at me look at you (instalação, 1995).


A artista Yoshiko Shimada (Japão) tem feito uma série de palestras em galerias e museus a que chamou a “Arte que te faz sentir desconfortável” (Art that makes you unconfortable). A postura feminista radical de Shimada fez com que sua produção tenha sido considerada ofensiva, agressiva pela visão massificada e superficial do grande público. Desde 1993, Shimada aborda, através de diversos meios como a performance, vídeo, instalação e gravura, temas relacionados à memória cultural do Japão com um foco específico nas mulheres e sua relação com imperialismo, violência e relações de poder.

Seu reconhecimento como artista veio justamente quando decidiu falar de episódios da história do Japão que eram desagradáveis à percepção geral, como a escravização de mulheres coreanas pelo governo Japonês durante a 2. Guerra Mundial.

As chamadas mulheres de conforto coreanas foram sistematicamente estupradas e feitas escravas sexuais dos soldados japoneses nas chamadas “casas de conforto” (house of confort) criadas nesse período, supostamente com conhecimento e tolerância das mulheres japonesas que se enquadravam no modelo socialmente promovido de boas esposas e donas de casa. Embora tenha reconhecido esse crime, o Governo Japonês nunca indenizou as vítimas propriamente nem se retratou num ato público. Recentemente, houve um movimento global de recordação deste episódio através da colocação de estátuas de bronze dessas mulheres de conforto coreanas em locais públicos estratégicos de diversas metrópoles do mundo como Berlim e Londres.

Nesse contexto, em 2012, Yoshiko Shimada faz a performance Tornando-se uma Mulher de Conforto Japonesa (Becoming a Japanese Confort Woman), em que senta por horas na frente da embaixada do Japão em Londres, pintada de bronze em referência às estátuas dedicadas às mulheres de conforto coreanas. Aqui, tornando-se outra, metamorfoseando-se numa mulher coreana, Shimada desconstrói a própria ideia da Mulher Japonesa, a boa esposa e dona de casa, que contraditoriamente teria contribuído e apoiado os abusos realizados contra outras mulheres pelos soldados da Guarda Imperial.

As mulheres de conforto coreanas são um recurso de Shimada para tratar temas atuais como a comodificação e objetificação da mulher num sistema em que o direito à propriedade se sobrepõe a todos os outros, incluindo a vida. Essa abordagem fica muito clara na instalação “olhe para mim, olhe para si mesmo” (look at me, look at you) de 1995: um vestido branco, que lembra um vestido de noiva, é colocado na frente de um espelho. Atrás do espelho, as vestes que usavam as mulheres de conforto durante a guerra. Fitas vermelhas trazem a presença do sangue e todas as conotações que a ele se pode associar, principalmente num contexto de escravidão sexual: aborto, estupro, violação, violência... No caso do vestido branco, o símbolo da noiva, housewife, mãe, a fita vermelha foi localizada na cabeça: consciência, culpa... Do outro lado – o lado a que se chega ao se passar através do espelho, da própria imagem – o sangue brota do ventre. O espelho enquanto aquilo que permite que eu me veja, e, ao mesmo tempo, o instrumento que encobre e revela a outra.

O corpo de obras de Shimada leva a uma reflexão sobre como arte e ativismo podem se complementar ou interpenetrar e, mais especificamente, como a arte pode ser um dos instrumentos de materialização de ideias e princípios do(s) feminismo(s) sem que perca os seus contornos específicos, individuais e autênticos. Nas obras de Shimada, conforto e desconforto são dois lados da mesma moeda: o conforto dos militares causa o desconforto das mulheres coreanas, o perceber da artista gera o desconforto dos Japoneses que compactuaram com os abusos, a segurança da dona de casa é garantida pela violação da escrava.

Eu sou artista, trabalho também temas ligados à mulher através de mídias diversas


e constantemente sou confrontada com comentários como “que trabalho agressivo”, “a sua performance me fez sentir desconcertado” ... É claro que existe um caminho estético a escolher e ele pode ou não ser leve e belo. Mas mesmo um trabalho visualmente lindo, como o de Shimada e muitas outras artistas contemporâneas, quando trata de temas pesados e que precisam ser revelados, traz em si um certo desconforto. É possível tratar temas como aborto, estupro, escravidão, abuso, colonialismo, sofrimento coletivo sem se estabelecer uma relação de parcialidade com a violência? A arte, ao debruçar-se sobre essas temáticas pode ser agradável?



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