As obras de artistas mulheres brasileiras produzidas entre 1960 e 2000 trazem de formas diversas a constelação do OVO para falar do feminino. No Japão, a carne viva e o sangue são forte referência para retratar as histórias e silêncios das mulheres. Na segunda aula que dei no curso organizado por Christine Greiner na Universidade de Tsukuba (Japão), penso a relação nas artes do corpo entre temas do feminino como o ciclo reprodutivo, maternidade, o universo doméstico, e essas representações, estabelecendo um relação entre criação e silêncio, arte e filosofia/política.
No curso Discovering Brazilian Culture organizado por Christine Greiner em Fevereiro passado na Universidade de Tsukuba (Japão), dei uma aula sobre ARTES DO CORPO E FEMINISMO: UMA BREVE COMPARAÇÃO ENTRE BRASIL E JAPÃO. Embora os feminismos e os femininos sejam vários, mesmo dentro de uma mesma constelação cultural e geográfica, nessa pesquisa me saltou aos olhos a forte presença de representações de OVOS nas obras de artistas mulheres no Brasil e, em paralelo, da carne/sangue nas obras de artistas mulheres no Japão.
Elenco aqui em um parágrafo, uma série de obras, produzidas entre 1960 e 2000 no Brasil, em que o OVO aparece: Regina Vater, O Ovo cósmico (1998), Lygia Pape, O Ovo (1967), Celeide Tostes, Passagem (1979), Ovos, Ninhos (1992); Anna Maria Maiolino, Entrevidas (1981); Dentro e fora: Antropofagias (1973)... Em 1965, Clarice Lispector publica o texto O ovo e a galinha, (curiosamente ou não, no contexto de um congresso de Bruxaria), em que coloca a criação, procriação ou inspiração como algo que nasce de um universo misterioso, um certo “inconsciente cósmico”, escondido nas profundezas de cada pessoa enquanto ser ao mesmo tempo individual e coletivo. Aqui há uma ligação entre criação, mágica e silêncio, que de certa forma retira a mágica de um lugar sobrenatural, colocando-a na natureza do Ovo, que, assim, se transforma em algo “inexplicável”.
As leituras desses ovos são muitas possíveis e se constroem sobre pilares diferentes, mas um deles que consigo destacar imediatamente é a CASA. Em 1968, Lygia Clark cria a instalação interativa A casa é o corpo, cujo centro é um balão de grande dimensão (no qual se pode entrar) e que lembra a forma de um ovo. Letícia Parente traz, na década de 1960, uma série de vídeo-performances em que se coloca como objeto do lar, como IN (vídeo, 1975), em que a artista se pendura com um cabide no armário como se fosse uma roupa, e Tarefa (vídeo, 1982), em que é literalmente passada a ferro por outra mulher. Partindo das raízes, da descendência, passando pela reprodução, e chegando na proteção e no conforto ou esconderijo e repressão do lar, a dicotomia amor e violência do universo doméstico permeia todos esses trabalhos, encapsulada numa forma oval.
No Japão, destaquei principalmente trabalhos de artistas contemporâneas como Tabaimo, Yanagi Miwa e Yoshiko Shimada. Nas obras dessas três artistas, a metáfora carne viva é evidente. Na animação Cozinha Japonesa (animação, 1999), de Tabaimo, vê-se uma mulher morta no chão da cozinha e uma panela de carne que se “auto-cozinha”. Em Elevator girls (fotografia, 1994-1998), de Yasagi Miwa, uma horda de mulheres cuidadosamente vestidas com terninhos vermelhos formam imagens de poças de sangue no espaço pictórico. Em Olhe para mim, olhe para você (instalação, 1995), Yoshiko Shimada traz o rastro de sangue das coreanas violentadas na segunda guerra mundial, esquecido por entre as roupagens que constroem a mulher Japonesa contemporânea.
O ovo é um espaço fechado, que não se pode entrever, mas cuja grandeza daquilo que encerra é intuída por todo ser que já nasceu. Uma maneira sutil e silenciosa de abordar o feminino, a maternidade, o útero, fertilidade e a natureza misteriosa da reprodução e da vida. É de se destacar aqui que na década de 1960, o Brasil, bem como outros países da América Latina, vivia uma fase política de repressão e restrição das liberdades individuais sob a ditadura militar que perdurou até a década de 1980. O silêncio político alia-se ao silêncio doméstico, resultando numa nuvem estético-conceitual que paira sobre a obra de artistas diversas do Brasil, e num olhar mais amplo latino-americano, neste contexto histórico.
A carne viva atrai e assusta. O sangue expresso e a ferida aberta das obras das artistas japonesas contrasta com a sutileza do ovo. Mas remetem para universos femininos paralelos. Diferentemente do contexto político de restrições no Brasil, a década de 1960 na história do feminismo japonês é marcada pela emergência de diversos grupos e movimentos ativistas que, de uma forma ou de outra, dialogavam com o desenvolvimento dos feminismos radicais, principalmente nos EUA. Aborto, pílula anticoncepcional, violência doméstica, o direito ao próprio corpo e ao próprio tempo reprodutivo... eram temas recorrentes na sociedade japonesa de então. A forma de aproximar esses temas na arte produzida por mulheres reflete esse caráter radical.
Apesar das diferenças nas abordagens do feminino no Brasil e no Japão, da sutileza e mistério do ovo à invasividade e expressividade da carne que sangra, esses dois caminhos próximos e distantes se encontram numa porta: o silêncio sonoro, uma certa mudez que se impõe às mulheres ao longo da História e das histórias.
E isso já me traz de volta a uma frase de Judith Butler em Bodies that matter (NY, Routledge, 2011, p. 13), com que termino essa postagem e planto a semente de uma nova e velha, longa e essencial reflexão, pesquisa (ou luta) a continuar:
“O feminino, para usar uma catacrese, é domesticado e tornado ininteligível dentro de um falogocentrismo que pretende ser auto-constitutivo. Repudiado, o remanescente do feminino sobrevive como o espaço inscricional dentro desse mesmo sistema.”
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